Secretaria Municipal de Cultura - SMC
Discurso da secretária Nilcemar Nogueira proferido no Seminário Mauá 360

27/06/2017 19:14:00


 
MUSEUS COMO ÁGORAS MODERNAS DE DIÁLOGO
 
Estamos aqui reunidos para uma extensa programação sobre temas que são comuns a dois grandes museus da Prefeitura do Rio, tamanha é a sua importância – o Museu do Amanhã, e o Museu da Escravidão e da Liberdade. 
Para o Museu da Escravidão e da Liberdade, um museu em construção conjunta com a sociedade, estes temas relacionam-se diretamente com sua ambição  de tornar-se uma ágora moderna de diálogo, dado que museus se encontram em posição privilegiada para articular questões essenciais sobre a sociedade e encorajar reflexões críticas sobre os legados que lhe dão forma ou dilaceram. Em especial, trataremos da história e do legado da escravidão no Rio de Janeiro e no Brasil, bem como do legado e contribuição da cultura de matriz africana para a cultura e sociedade brasileira.
 
Para o Museu do Amanhã, que pensa o futuro, são temas relevantes por fazerem refletir sobre o presente e a memória social do contexto em que está inserido, a região portuária. 
 
A diversidade cultural é diretriz primeira da atual gestão da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de janeiro, focada em ações para promover a diversidade, a expressão de identidades, estimular a integração social, combater preconceitos de raça, de religião, de orientação sexual e de gênero e contribuir para a cultura da paz e da tolerância. 
 
De forma transversal, esses equipamentos da Cultura têm o potencial de atuar na perspectiva do resgate da Memória e da Preservação do Patrimônio da nossa Cidade, um dos principais eixos estratégicos da Secretaria Municipal de Cultura.  
 
“Museus e histórias contestadas: dizendo o indizível em museus” é o tema de trabalho do Conselho Internacional de Museus (ICOM) para 2017. Esta escolha, em momento de profundas divisões a nível mundial, não é aleatória. É preciso apurar e confrontar traumas históricos para não repetirmos horrores do passado. A única forma de fazê-lo é nomear, reconhecer e debater legados difíceis com coragem, promover sua ressignificação e visionar um futuro coletivo sob a ótica da reconciliação. 
 
É neste contexto que expressamos o desejo de construir um museu dedicado à história e legado da escravidão no Rio de Janeiro, entendendo que a iniciativa demanda reflexões e atenção para não banalizarmos tema de tamanha complexidade, e que ainda deixa marcas indeléveis no Brasil de hoje. Este museu quer também celebrar a cultura afro-brasileira, em sua riqueza, diversidade e matizes. Ciente de tais responsabilidades, desejamos pautar esta iniciativa em uma relação dialógica e transparente com a sociedade.
 
O ‘Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos’, de D. Eltis e D. Richardson, aponta que quase metade de todos os africanos trazidos como escravos para as Américas vieram para o Brasil – cerca de 4,68 milhões. Destes, mais de 2 milhões desembarcaram no Rio de Janeiro. Surpreendentemente, há uma sanitarização desta memória no espaço urbano, e ousemos dizer, em nossa memória coletiva e historiografia oficial. Enquanto muitos locais de significado para a cultura afro-brasileira tenham sido memorializados na região do novo Porto Maravilha, estas iniciativas não são suficientes para reconhecer os golpes profundos, deferidos por quatro séculos de escravidão contra uma parte significativa de nossa sociedade, e cujas inegáveis consequências perduram até hoje. Também não são suficientes para celebrar o legado cultural deixado pelos descendentes dos africanos escravizados nesta região e em nossa cultura como um todo.
 
Um museu dedicado à história e legado da escravidão e aos desdobramentos de seu término no contexto brasileiro deve problematizar e ressignificar tais temas. Se história da escravidão remete à privação de direitos humanos e cidadania, dá também testemunho da resiliência e indestrutibilidade do espírito humano, criatividade e agência pessoal. Devemos tratar estas duas vertentes distintas em suas perspectivas passada e presente, e celebrar suas influências na construção da cultura afro-brasileira pela perspectiva da “unidade na diversidade”. Isto requer compreender que a ação que desumaniza a vítima, desumaniza também aquele que perpetrou a ação desumana. Assim somos todos inegavelmente tocados pelo legado da escravidão no Rio de Janeiro e no Brasil de formas visíveis e invisíveis. É por este motivo que a prefeitura do Rio de Janeiro entende que o Museu da Escravidão e da Liberdade diz respeito à sociedade como um todo. Reconhecer entretanto que muitos daqueles tocados pelo legado da escravidão ainda não superaram suas consequências, requer um museu que seja vetor de promoção de autoestima, desenvolvimento, oportunidades socioeducativas e impactos duradouros, para toda a sociedade.
 
O Museu da Escravidão e da Liberdade quer fazer ouvir vozes silenciadas, narrando a história por seus protagonistas. A dimensão de tal projeto só se viabiliza com processos participativos de baixo para cima, rechaçando abordagens curatoriais autoritárias. Desta forma, queremos contar com o movimento negro, pessoas de notório saber e com a sociedade como um todo na construção deste bem cultural comum. 
 
A proposta de desenvolvimento do Museu segue a lógica de construção conjunta com a sociedade, usando como concepção os preceitos da nova museologia e da museologia social, com eixos norteadores que serão discutidos amplamente na oficina participativa que ocorrerá nos dias 14 e 15 de Julho no Museu de Arte do Rio, nosso vizinho aqui na Praça Mauá:
 
O Desenvolvimento de baixo-para-cima, considerando a transparência nas ações, publicizando-as através das redes sociais, sites oficiais, e escuta ampliada, através da participação dos líderes sociais e comunitários em oficina participativa. 
 
o Nesta oficina se definirão eixos temáticos de interesse dos grupos diversos e abordagens possíveis para o desenvolvimento conseguinte da linha curatorial do museu. 
 
o Será também eleito um Conselho Consultivo, o qual representará a sociedade, nos referendos das ações elaboradas pela equipe técnica durante o desenvolvimento conceitual e vocacional do museu, e durante a síntese dos eixos temáticos e abordagens levantados em uma linha curatorial para o Museu que seja coerente com os desejos da sociedade. 
 
o Outro Conselho Científico será criado, para dar suporte à equipe curatorial no desenvolvimento da narrativa e nos programas sociais e de pesquisa do Museu.
 
O Projeto Curatorial deve ser desenvolvido a partir do entendimento da escravidão como parte de uma narrativa maior de construção da cultura e da sociedade brasileira. Entende-se que esta narrativa seja repleta de versões conflitantes, verdades diversas, e histórias contestadas, que mesmo podendo ser antagônicas, guardam seus respectivos lugares dentro do processo de construção de nossa sociedade, e devem ser ouvidas e acolhidas. Somente uma abordagem pautada na aceitação da complexidade como ponto de partida, e no respeito pelo outro pode chegar a um resultado construtivo para o Rio de Janeiro e para o Brasil. 
 
O Museu da Escravidão e da Liberdade buscará ser local de reconciliação e cura pela memória, bem como de reconhecimento da importante contribuição da cultura africana para a construção da cultura brasileira. Só assim poderá servir o propósito de nos reconhecermos como sociedade complexa, com “verdades” diversas, e infinitas potencialidades. 
 
A seguir levanto uma série de eixos temáticos propostos como pontapé inicial para discussões durante a oficina, e que podem nos ajudar a refletir conjuntamente sobre o museu que queremos construir:
 
1. Escravidão no Brasil, no Rio de Janeiro, na zona portuária do Rio de Janeiro – história geral, histórias de vida e histórias orais
 
2. Origem dos Africanos escravizados trazidos para o Brasil
 
3. Destruição das identidades de origem na chegada ao Brasil – a perda da língua, da memória e da cultura – o que se perdeu e o que permaneceu? É importante para as comunidades negras resgatar estas conexões de origem ou não?
 
4. A convivência e/ou sincretização e/ou assimilação das culturas africanas pela europeia. A cultura africana como cultura matricial brasileira.
 
5. O papel social e econômico dos escravos e dos negros no Brasil pré e pós abolição
 
6. Abolição da escravatura – motivações, processo e consequências
 
7. Racismo no Brasil / preconceito racial e social – o que é, suas origens e como nos afeta? Nos enxergamos como uma cultura racista? Que diferentes perspectivas há sobre este tema?
 
8. Escravidão como conceito / escravidão moderna – que posicionamento o museu deve assumir frente a este importante tópico dos direitos humanos?
 
9. Inclusão / Exclusão social
 
10. Impactos da escravidão no desenvolvimento socioeconômico dos afrodescendentes
 
11. Formação da Cultura Afro-brasileira – a importância da cultura de matriz africana para a cultura brasileira
 
12. Formação da Cultura Afro­carioca – a especificidades do Rio de Janeiro
 
13. A Herança africana na arte, ciência, humanidades, manifestações culturais tais como, culinária, música, dança, estética, outros
 
14. Grandes heróis, intelectuais, artistas afro-brasileiros – conhecidos e desconhecidos.
 
Outros princípios relevantes para a construção do Museu da Escravidão e da Liberdade são:
 
A Utilização de narrativas contadas pela voz de seus protagonistas, através da coleta de histórias orais, depoimentos, material audiovisual e contação de histórias. 
 
O Entendimento do Museu como local seguro para coletar, preservar e relembrar as memórias dolorosas do passado, com o objetivo de promover reconciliação e celebrar a indestrutibilidade do espírito humano, a criatividade e a agência pessoal.
 
O Estreitamento das relações culturais entre a África e o Brasil, buscando entender na perspectiva de hoje suas similaridades e diferenças – o que compartilhamos e onde nos tornamos únicos. 
 
Queremos aprender com outros esforços de ressignificação de passados difíceis na busca de um caminho de reconciliação. Alguns países como Estados Unidos, Reino Unido, África do Sul, Moçambique, Alemanha a exemplo de outros, optaram por conferir aos museus o papel de ressignificar seus legados dolorosos para revisitar a complexidade de suas identidades, valorizando autoestima e desenvolvimento social. Longe de serem experiências perfeitas, nos oferecem bons exemplos com os quais devemos aprender e trocar. 
 
O Desenvolvimento a partir do conceito de planejamento financeiro de longo prazo, através da metodologia denominada triângulo da sustentabilidade, que prevê a diversificação de fontes de receita para a sustentabilidade financeira do Museu. A proposição é a busca incansável por uma gestão sustentável, que dimensione o desenvolvimento e operacionalização dos museus com base em demandas reais, com impactos mensuráveis, e que explore, a exemplo de grandes museus no mundo, opções diversas e significativas de geração de renda própria, sempre em linha com suas missões, de forma a aumentar paulatinamente a independência dos museus de recursos públicos exclusivos. Sabemos que temos um longo caminho a percorrer neste sentido, mas é nosso desejo que este se torne o modus-operandi de nossos museus.
 
O Museu como um modelo capaz de inovar, compartilhar e difundir boas práticas em políticas públicas e museológicas, voltadas para o regaste e salvaguarda da memória e da herança cultural carioca e brasileira. O conceito da transversalidade entre diversas instituições é um modelo que gostaríamos de explorar: já adotado em outras cidades, tais como Glasgow, na Escócia, sob seu guarda-chuva “Glasgow Museums”, Ou em Liverpool, pelo National Liverpool Museums, tem sucesso relevante no fomento de ações de pesquisa, preservação, educação, comunicação e desenvolvimento transversais através de seus museus, potencializando suas coleções, recursos humanos, conhecimento e impacto social.
 
Considerar o Museu da Escravidão e da Liberdade como Museu de Território, com núcleos dispersos, que além de sua sede, no Armazém Central Docas Pedro II, seu elemento focal, se junta ao Cais do Valongo e inclui outros locais de referência da história do negro no território da região portuária como experiências independentes e complementares, conectadas entre si como uma rede interpretativa abrangente e complexa. Neste âmbito o Museu da Escravidão e da Liberdade quer ser ponto de convergência para outras iniciativas do território, fornecendo oportunidades de troca coletiva, debate e apoio.
 
Ainda pensando em rede, um segundo círculo de abrangência englobando a região metropolitana, onde se localizam alguns espaços de prática religiosa, como o terreiro Ilê Axé Opô Afonjá em São João de Meriti, outras manifestações culturais de matriz africana, as antigas fazendas e suas senzalas, cuja história se encontra relacionada à da região portuária. 
 
Outros círculos de abrangência vão sendo desenhados ao longo do seu desenvolvimento e atuação dinâmica, a partir de referências históricas cruzadas com a da região prioritária e com o Museu, em nível estadual, federal e internacional, e cujos territórios são atingidos através de uma rede virtual de informações e outros programas de comunicação, cooperação e intercâmbio.
 
O Engajamento do Museu nas ações já em curso na região portuária envolvendo diretamente a Prefeitura do Rio: o Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana, criado pelo Decreto Municipal 34.803, de 29 de novembro de 2011, a escavação do sítio arqueológico Cais do Valongo/Cais da Imperatriz, a gestão do Centro Cultural José Bonifácio e outros. Nessa perspectiva é que já criamos o Museu através de um decreto Municipal e o instalamos no Centro Cultural José Bonifácio, nosso equipamento que traz na sua história, o legado da educação, pelo edifício tombado ter sido uma escola do Imperador, e o legado da memória do Movimento Negro, através da sua biblioteca temática, seu acervo e seu centro de referência Carolina Maria de Jesus.
 
Escritora negra, favelada, mãe, autora do livro/diário "QUARTO DE DESPEJO", Carolina é homenageada no Centro de Referência do novo Museu. Nasceu em 1914 em Sacramento, estado de Minas Gerais, cidade onde viveu sua infância e adolescência. Faleceu em 1977, com 62 anos de idade na cidade de São Paulo, onde viveu. Foi matriculada em 1923, no Colégio Allan Kardec, primeiro Colégio Espírita do Brasil. A benfeitora de Carolina Maria de Jesus foi a senhora Maria Leite Monteiro de Barros, pessoa para quem a mãe de Carolina trabalhava como lavadeira. Mesmo diante de todas as mazelas, perdas e discriminações que sofreu em Sacramento, por ser negra e pobre, Carolina revela através de sua escritura a importância do seu testemunho. A obra mais conhecida é traduzida em 13 idiomas nos últimos 35 anos é Quarto de Despejo. Essa obra resgata e delata uma face da vida cultural brasileira quando do início da modernização da cidade de São Paulo e da criação de suas favelas. Sua obra é referencial importante para os Estudos Culturais, tanto no Brasil como no exterior.
 
A preservação da memória do passado, como a produzida por Carolina Maria de Jesus e seu diálogo com o no presente, são ferramentas importantes para honrar vozes silenciadas, valorizar heróis desconhecidos, e promover a reconciliação com nossas histórias contestadas. Precisamos ressignificar para desenvolver ações efetivas e duradouras para a afirmação e a autoestima da negritude no Brasil. 
 
Encerro aqui com um provérbio Bantu, que toca a cultura de origem de grande parte dos africanos trazidos para o Brasil – “Ubuntu ngumtu ngabanye abantu” – “Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”. Acredita-se, com base na ubuntu, que não há bem estar individual sem bem estar coletivo. O mal que recaiu sobre a comunidade escravizada, hoje afeta a sociedade como um todo. Enfrentemos, pois nossas “histórias contestadas” para por fim nos regenerarmos coletivamente celebrando uma sociedade múltipla, plural e diversa. Dessa forma agradeço àqueles que tem contribuído para o enriquecimento da discussão e para a construção do Museu, através do Grupo de Trabalho:
 
I - À minha equipe na Secretaria Municipal de Cultura:
Coordenação Técnica: Cristina Lodi 
Coordenação de Relações Institucionais
Titular: Vanda Ferreira, Suplente: Pituka Nerobe
Titular: Lilia Gutman e Suplentes: Alexandre Rios, Heloisa Queiroz e Flavio Teixeira
 
II - Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação
 
Riourbe
 
IRPH - Instituto Rio Patrimônio da Humanidade
 
III - IPP - Instituto Pereira Passos
 
IV - CDURP - Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro
 
V - Procuradoria Geral do Município
 
VI - Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
 
VII - IPLAN Rio
 
VIII - COMDEDINE (Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro)
 
X - CEDINE - Conselho Estadual de  Defesa dos Direitos do Negro
 
IX - Secretaria de Estado da Cultura – Sistema de Museus
 
X - IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
 
XI - Associação Recreativa Cultural Afoxé Filhos de Gandhi-RJ
 
XII - Instituto Pretos Novos
 
XIII - Quilombo Pedra do Sal 
 
XIV - Organização Cultural Remanescentes de Tia Ciata
 
XV - FUNDAÇÃO PLANETÁRIO
 
XVI - CENTRO CULTURAL PEQUENA ÁFRICA
 
XVII - CENTRO CULTURAL JOSÉ BONIFÁCIO
 
 
Ao APOIO do:
 
MINISTÉRIO DA CULTURA
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL
FUNDAÇÃO PALMARES
 
E à COOPERAÇÃO da:
OAB/COMISSÃO DA VERDADE SOBRE A ESCRAVIDÃO
UFF-LABHOI – LABORATÓRIO DE HISTÓRIA ORAL E IMAGEM DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
SMITHSONIAN NMAAHC – NATIONAL MUSEUM OF AFRICAN AMERICAN HISTORY AND CULTURE