Paulo Freire transforma nosso olhar sobre o fazer educacional a partir do momento em que centraliza o aluno no processo de aprendizagem; mais que isso, traz para o cerne do pensar e fazer pedagógicos a história de vida e de trabalho do aluno. Para ele, o aluno era um indivíduo que em suas experiências do cotidiano poderia contribuir para uma alfabetização autêntica, partindo-se de sua realidade sócio-histórico-cultural para que o aprender fosse repleto de significantes e significados.

 

 

A "boniteza", adjetivo constantemente utilizado por Freire em suas obras, pairava sobre processo educacional emancipatório, onde o sujeito se descobre e se assume como protagonista de sua própria história. O caminho possui percalços que segundo Freire (2016) não podem impedir aluno e professor de ousarem, criarem e refletirem o mundo/no mundo as suas ações. Para Freire (2016, p. 33), "[...] não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos" e que liberta o indivíduo de sua condição de oprimido, fornecendo aos sujeitos formas "outras" (WALSH, 2009) de agir e viver em sociedade.

 

 

O que um educador pode deixar como legado? Em primeiro lugar, pode deixar uma vida, uma biografia. E Paulo nos encantou, em vida, com sua ternura, doçura, carisma e coerência, compromisso e seriedade. Suas palavras e ações foram de luta por um mundo "menos feio, malvado e desumano". Ao lado do amor e da esperança, ele também nos deixa um legado de indignação diante da injustiça (GADOTTI, 2001, p. 52).

 

 

Nessa direção emancipadora, a palavra não é abstrata, muito menos substantivo, ela é ação concreta que move os indivíduos de meros espectadores para seres atuantes no mundo e, primeiramente lendo esse mundo, sejam capazes de ler a palavra (FREIRE, 2001). Codificar e decodificar o mundo permite que o sujeito tenha consciência de seu papel para poder modificá-lo. Freire apresenta a palavra para o excluído, para a classe operária, para os que tiveram negados direitos básicos a qualquer cidadão, como o direito de ler e escrever e ser responsável por contar a própria história.

 

 

A forma como a educação é conduzida pode levar o sujeito à emancipação ou à manutenção do status quo. Nesse sentido, Freire (2017) critica a educação bancária monocultural que enxerga os alunos como depósitos de conhecimentos onde os papéis de quem ensina e de quem aprende estão bem definidos. Aponta, como alternativa, uma pedagogia em que tanto alunos quanto professores sejam capazes de aprender e ensinar em uma (re)construção coletiva, como nos "círculos de cultura", onde o conhecimento é o que dá movimento aos espaços, conduzindo a uma práxis libertadora, pois "a educação autêntica (...) não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo. Mundo que impressiona e desafia a uns e a outros, originando visões ou pontos de vista sobre ele". (FREIRE, 2017, p. 116).

 

 

Quando a educação não se propõe desenvolver a escuta de seus pares, verticalizando os conhecimentos a serem adquiridos, podem acontecer situações indisciplinares. Parte-se da ideia de que a indisciplina não seja exclusivamente relacionada a questões comportamentais, mas sim ao não reconhecimento da diversidade cultural presente na escola (BARRETO, 2018). As práticas dialógicas e o respeito ao protagonismo do sujeito nos atos de ensinar e aprender, previstos nos ideais de Freire, podem ajudar a minimizar a incidência de situações indisciplinares que impeçam que o processo de ensino-aprendizagem seja exitoso.

 

 

Contextualizando todos esses aspectos, o presente artigo traz a metodologia de revisão bibliográfica para "[...] identificar o que mais se tem enfatizado e o que tem sido pouco trabalhado" (DESLANDES, 2016, p. 37), destacando as obras de Paulo Freire para uma educação crítica e emancipadora. Iniciamos problematizando a seguinte questão: "Como a palavra em Paulo Freire pode favorecer uma práxis libertadora?", tendo como objetivo refletir as confluências entre indisciplina discente, interculturalidade e a importância da palavra para o educador como conscientização e emancipação do aluno no espaço escolar.

 

 

O artigo está ancorado em três grandes eixos. Em um primeiro momento, destacamos o legado de Freire, seu olhar pelo oprimido e a importância da alfabetização das classes trabalhadoras. Em um segundo momento, analisamos a interculturalidade como forma de serem aplicadas as práxis dialógicas de Paulo Freire e, no terceiro, refletimos o poder da palavra em relação à indisciplina escolar como resposta a uma educação que ainda precisa pensar os sujeitos de maneira plural. Os resultados apontam para a urgência de se pensarem práticas educacionais que valorizem a subjetividade dos sujeitos e que promovam espaços plurais de (res)significação das identidades para a construção de cidadãos críticos em/da sociedade.

 

 

 

"As práticas dialógicas e o respeito ao protagonismo do sujeito nos atos de ensinar e aprender, previstos nos ideais de Freire, podem ajudar a minimizar a incidência de situações indisciplinares que impeçam que o processo de ensino-aprendizagem seja exitoso."

 

 

O legado de Paulo Freire: da opressão à conscientização

 

 

Paulo Freire era um grande apaixonado pela educação. Voltou sua atenção para os jovens e adultos, aqueles cujas intempéries da vida os afastam dos bancos escolares, substituindo livros e cadernos por enxadas e pelo chão da fábrica. Essa atitude de Freire transformou a forma de se fazer aprendizagem. E o que se iniciou em uma cidade do interior do sertão nordestino, com um grupo de adultos, trabalhadores rurais, rompeu barreiras e ganhou o mundo. Hoje o exemplo é utilizado por professores das mais diversas etapas da educação, comprovando que uma educação plural, que liberte não só alunos como professores, é o grande objetivo dos que veem na escola um projeto de sociedade e cidadania.

 

Em sua certidão de nascimento, Freire está registrado como Paulo Reglus Neves Freire, nascido em 19 de setembro de 1921, na cidade de Recife, mas ficaria mundialmente conhecido como Paulo Freire. Filho de um policial militar e de uma dona de casa, foi criado por uma família que sempre prezou pela educação. Quando se formou em Direito pela Universidade do Recife, em 1946, Freire já havia trabalhado com educação no Colégio Oswaldo Cruz (primeira escola onde também estudou), como assistente de ensino e, depois de sua graduação, como professor de Língua Portuguesa.

 

 

Freire efetivamente nunca exerceu a profissão de advogado. Abraçou a causa da educação. Destacou-se como docente em escolas de periferia e, das experiências com os alunos, percebeu que não havia material pedagógico voltado para jovens e adultos. De acordo com Maria Madalena Torres, educadora popular no Centro de Educação Paulo Freire, na região de Ceilândia (DF), em entrevista ao jornal Correio Braziliense, "tudo o que se tinha na área pedagógica era voltado para crianças, enquanto o número de adultos analfabetos no país só crescia e nenhuma política era elaborada para esse público". (CORREIO BRAZILIENSE, 2011).

 

Diante desse cenário, Freire começou a desenvolver programas exclusivamente voltados a adultos. Devido ao sucesso dos resultados alcançados, em 1962, decidiu se dedicar a um outro trabalho, que pode ser considerado como o que fez despontar seu nome e sua estratégia de ensinar ao mundo. O pequeno município de Angicos no estado do Rio Grande do Norte teve sua história educacional transformada quando Paulo Freire alfabetizou aproximadamente 300 trabalhadores rurais em 45 dias (MACIEL, 2017). Foi uma ação desenvolvida com base nas experiências de vida e do cotidiano dos adultos e não mais uma alfabetização infantilizada que até então era homogênea e não respeitava a identidade do aluno/trabalhador.

 

 

"Freire encontrou uma maneira de aproximar os indivíduos das classes pobres, trabalhadoras e esquecidas de seus direitos fazendo-os refletir criticamente sobre sua condição e existência social através da educação. Muniu os oprimidos com a arma mais poderosa de fazer com que o homem aprendesse a lutar por seus direitos, entendendo sua situação de exclusão, pois só consegue se emancipar quem se percebe excluído. Sem essa percepção, não há por que buscar por mudança."

 

 

 

É um resgate da humanidade, do valor como ser humano que cultural, política, histórica e estrategicamente as classes dominantes retiraram, relegando os sujeitos a posições e condições sub-humanas, desumanas de vida.

 

 

Portanto, uma marca persistente no paradigma pedagógico hegemônico é: distinguir e acompanhar os processos de formação humana dos grupos sociais, políticos, culturais reconhecidos como humanos, educáveis, humanizáveis. [...]. Tal pensamento assumiu uma postura de descompromisso político, ético, pedagógico com a humanização dos Outros, dos oprimidos, por não os reconhecer humanizáveis, educáveis, passíveis de formação humana. (ARROYO, 2019, p. 5).

 

 

Paulo Freire retira o oprimido de lugar de objeto, manipulável e o traz para um lugar de sujeito, "humanizando-o", dando a ele a oportunidade de ler o mundo através da leitura de sua própria história de vida, analisando suas experiências cotidianas não como mero espectador passivo, que recebe aquilo que lhe é oferecido, mas sendo capaz de decidir por si mesmo e tenha autonomia nas suas escolhas. Portanto, "[...] cabe, também, à educação a responsabilidade de abrir as portas da mente e do coração e de apontar horizontes de construção partilhada de sociedades humanas mais humanizadas" (BRANDÃO, 2002, p. 22).

 

 

A relevância e o sucesso da experiência pedagógica de Angicos puderam ser constatados na forma como os trabalhadores começaram a lutar por seus direitos, exigindo melhores condições de trabalho e salário digno. Porém, o despertar epistemológico dessa classe outrora oprimida suscitou a revolta da classe opressora, que ameaçava a manutenção do status quo. Esse foi o início de uma reação hostil contra Paulo Freire que radicalizou de tal forma que, em 1964, ele acabou preso e exilado, acusado de subversão por causa de seus métodos de educação transformadores (MENDONÇA, 2013).

 

 

No período em que esteve exilado, Freire continuou aprendendo e ensinando com e sobre os oprimidos. Nunca parou de militar em favor dos sujeitos objetificados pelo opressor. E o considerado por muitos como subversivo regressou ao solo brasileiro nos tempos derradeiros da ditadura civil-militar na década de 1980. Com ele, retornou uma esperança que se converteu em ação e os ideais interrompidos juntaram-se a novas propostas e planos. Não era mais possível impedir que a voz do oprimido se calasse.

 

A cada dia mais educadores, empenhados pela causa da classe popular e trabalhadora, uniam-se a Paulo Freire. Hoje, em pleno século XXI, seu legado e sua história são mundialmente conhecidos e seus pressupostos pedagógicos aplicados nas mais diversas salas de aula (de crianças a adultos) não só no Brasil como no exterior. A quantidade de pessoas transformadas pela educação através de seus ideais é imensurável. E esse é, inclusive, o motivo pelo qual ele continua sendo considerado uma ameaça ao modelo de exploração da classe dominante.

 

 

Porém, maior do que as constantes investidas contra sua obra e seu legado, são sua paixão e sua determinação pela causa da educação, que continua inspirando milhares de educadores que fazem da esperança o verbo esperançar e que, por isso, continuam esperançando, pois segundo Freire (2017, p. 114) "não é [...] a esperança um cruzar de braços e esperar. Movo-me na esperança enquanto luto e, se luto, com esperança, espero.

 

 

Monoculturalismo e interculturalidade: da educação bancária à ação-reflexão

 

 

Para Candau (2008), Walsh (2009) e Freire (2016; 2017), o sistema educacional ainda encontra suas bases epistemológicas fortemente enraizadas nos pressupostos monoculturais de educação. A escola permanece com seus objetivos voltados para a transmissão de conhecimentos, sendo o aluno, o que Freire (2017) vai chamar de "banco", sempre pronto a receber o conteúdo a ser depositado. Por sua vez, Paulo Freire apresentou ao mundo uma nova maneira de fazer a educação com base nas trocas dialógicas entre os pares.

 

 

Essa característica foi ao encontro de uma abordagem intercultural, onde a pluralidade de conceitos e as diferentes identidades dos sujeitos são consideradas essenciais nos atos educativos. Responde aos anseios por uma emancipação crítica e consciente do aluno, pois discute as relações de poder e dominação onde as classes dominantes estabelecem e mantêm o status quo (WALSH, 2009). Esse movimento intercultural de refletir e agir sobre sua condição de subalternidade encontra nos ideais de Freire um caminho de conscientização onde a educação deixa de ser treinamento e repetição de conceitos para que o sujeito seja capaz de, discutindo as relações de poder e de domínio do oprimido pelo opressor, escrever um novo capítulo em sua história.

 

 

É neste sentido, entre outros, que a pedagogia radical jamais pode fazer nenhuma concessão às artimanhas do "pragmatismo" neoliberal que reduz a prática educativa ao treinamento técnico-científico dos educandos. Ao treinamento e não à formação. A necessária formação técnico-científica dos educandos por que se bate a pedagogia crítica não tem nada que ver com a estreiteza tecnicista e cientificista que caracteriza o mero treinamento. É por isso que o educador progressista, capaz e sério, não apenas deve ensinar muito bem sua disciplina, mas desafiar o educando a pensar criticamente a realidade social, política e histórica em que é uma presença (FREIRE, 2000, p. 43-44).

 

 

Corroborando uma abordagem intercultural, Paulo Freire apresenta aos educadores e à sociedade uma nova forma de fazer educação. Ele desloca o sujeito de um lugar de mero espectador da aprendizagem, característica predominante de uma educação tradicional monocultural, onde existem papéis bem definidos pelos atores que compõem os atos de ensinar e aprender: o professor detém o conhecimento e é responsável por transmiti-lo aos alunos, que devem estar dispostos a aprender, ocupando a posição de quem não sabe, caracterizando-se, assim, o saber verticalizado característico dos pressupostos tradicionais de educação.

 

 

Nesse sentido, é importante destacar o papel do currículo e dos conteúdos escolares que tanto podem concorrer para a manutenção do status quo ou para a emancipação dos indivíduos, pois a forma como são aplicados e os instrumentos utilizados para que o aluno alcance a aprendizagem dizem muito sobre o tipo de educação e de sociedade que se pretende implantar. Aulas com conteúdos que não condizem com a realidade, excesso de matérias e planejamentos para serem aplicados refletem características monoculturais que repelem os sujeitos de um conhecimento autêntico e transformador.

 

 

Nesse modelo de educação bancária também devem ser consideradas as maneiras como as salas de aula estão devidamente organizadas, enfileiradas, o que segundo Foucault (2008) muito remete às celas nas prisões, onde os espaços são forjados para manter o controle sobre corpos e mentes dos presidiários. E por quantas vezes os alunos também não se sentem presos dentro do espaço escolar? Quantas vezes professores são tolhidos em suas ideias inovadoras justamente por fugir dos padrões previamente estabelecidos e que não permitem desvios nos cursos de seus planejamentos? Freire, alfabetizando adultos trabalhadores do campo, à sombra de uma árvore, mostrou ao mundo que o ato de ensinar e aprender pode ocupar múltiplos espaços e maneiras de aprendizagem. A alfabetização para Freire precisava encontrar o povo, a escola precisava estar onde o povo estava e precisava se configurar como espaço democrático onde os direitos de aprender deveriam ser iguais para pobres e ricos. Nesse contexto, as práticas pedagógicas deviam despertar indagações e inquietações de ordem "político-pedagógica-ética" (ARROYO, 2019, p. 17), que levassem educadoras e educadores a questionar os caminhos que a pedagogia havia percorrido ao longo da história, ratificando a desumanização dos alunos, reconhecendo "que há uma lacuna histórica de teoria pedagógica sobre os históricos processos de roubar humanidades, de proibi-los de ser humanos, de se saberem roubados em seu direito à vida". (ARROYO, 2019, p. 17).

 

 

"A alfabetização para Freire precisava encontrar o povo, a escola precisava estar onde o povo estava e precisava se configurar como espaço democrático onde os direitos de aprender deveriam ser iguais para pobres e ricos."

 

 

A interculturalidade corresponde aos anseios de Freire por uma educação que aprenda a dialogar sobre e com as diferenças. Sabendo-se que as identidades são flexíveis, elas se configuram como ponto de partida do "eu" em direção ao "outro" e, nessa relação, fundem-se elementos que nos permitem pensar em como e quanto a convivência com os pares agrega novos elementos à nossa identidade. Ao longo de seu legado, Freire reconhece na identidade plural dos alunos a forma de a alfabetização ser significativa por refletir o lugar de fala do sujeito.

 

 

Trata-se do exercício de igualdade e diferença onde temos o direito de ser iguais e diferentes, sem que isso nos diminua (SANTOS, 2006). Nesse cenário, é necessário que sejam reservados tempos e espaços para o diálogo crítico onde a palavra não se converta em mero ativismo, mas que seja uma práxis libertadora, emancipando criticamente alunos e professores rumo à cidadania de fato e de direito.

 

 

Portanto, não podemos esquecer o caráter político presente em uma educação crítica, pois reconhecer seu lugar de fala, sua situação de oprimido para através das práticas dialógicas ser capaz de exigir seus direitos e se emancipar é um ato político (FREIRE, 1992). É por meio da educação e da politização que é possível emancipar, transformar e inovar. A base de todo o processo é a alfabetização, uma alfabetização que conecte indivíduo à sua realidade, ou seja, uma alfabetização consciente, um projeto de cidadania.

 

 

A palavra como prática dialógica: pensando a indisciplina para além da questão comportamental

 

 

Segundo Candau (2008) e Freire (2016; 2017), a escola não é neutra nem desprovida de cultura. Tampouco pode desconsiderar a cultura e as realidades que os alunos trazem de seus cotidianos. Um aluno que não se reconheça no processo de aprendizagem oferecido pela escola pode ser potencial candidato aos atos indisciplinares (BARRETO, 2018), pois a escola pouco representa ou pouco faz para integrar sua história. Entra em cena o protagonismo da palavra de Freire (2016; 2017), que não deve ser pautada como mero ativismo, nem transformada em "palavra oca, em verbosidade alienada e alienante". (FREIRE, 2017, p. 80), mas que deve debater questões da vida, do cotidiano, de um movimento conscientizador de alunos e professores e de conscientização sobre suas realidades.

 

 

Além disso, cabe acrescentar que nenhuma palavra é desprovida de ideologia: ela transmite uma mensagem, seja ela estereotipada ou libertadora. Podemos, então, refletir que indisciplina, seja por atos ou palavras, pode indicar uma insatisfação com a forma pela qual a aprendizagem é aplicada. Será que humaniza ou desumaniza o aluno? Será que currículos e conteúdos são pertinentes às realidades ou reproduzem ideias acríticas, mas repletas de ideologia da classe opressora? Pensando-se por esse prisma, a proposta de Freire (2016; 2017) por uma aprendizagem dialógica pode ser a resposta à insatisfação do aluno "insubordinado".

 

 

O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens, não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo. (FREIRE, 2017, p. 93).

 

 

Portanto, não é possível debater a realidade do aluno oprimido, deixando de lado as questões socioculturais de onde ele está inserido. Nessa direção de libertação, Paulo Freire (res)significa a palavra, trazendo para o centro do debate o próprio ser humano e sua condição de oprimido: o ser humano como palavra viva e transformadora onde, por meio do debate e do diálogo, professores e alunos podem se reconhecer, estreitando laços de pertencimento e, dessa forma, contribuindo para diminuir atos indisciplinares.

 

 

Assim, corroboram-se as conclusões de Caldeira (2007) e Barreto (2018) quando afirmam que a indisciplina pode ter características positivas quando os alunos a utilizam como recurso para sinalizar que a educação se afastou de suas realidades cotidianas e que nos pressupostos de Paulo Freire podem ser encontradas ferramentas que aproximem alunos e professores de uma aprendizagem com significantes e significados que façam com que o processo de ensino-aprendizagem seja exitoso.

 

 

Os temas geradores caminham em direção a essa inconclusão dos sujeitos, pois Freire buscava que os educandos pronunciassem palavras e contextos que expressassem suas vidas, não só no sentido do existir, mas como um problema, no sentido de direitos não realizados. Porque, quando ele pronuncia, assume o problema para a sua vida e reflete sobre o que falta, está dando o primeiro passo, que é o que Freire chama de conscientização, tomar consciência do mundo e de sua própria vida.

 

 

 

A investigação da temática, repitamos, envolve a investigação do próprio pensar do povo. Pensar que não se dá fora dos homens, é sempre referido à realidade. Não posso investigar o pensar dos outros, referido ao mundo, se não penso. Mas, não penso autenticamente se os outros também não pensam. Simplesmente, não posso pensar pelos outros nem para os outros, nem sem os outros. A investigação do pensar do povo não pode ser feita sem o povo, mas com ele, como sujeito de seu pensar. (FREIRE, 2017, p. 140-141).

 

 

A utilização dos temas geradores, de palavras significativas e de práticas curriculares atuais e voltadas para as necessidades e interesses dos alunos pode contribuir para que situações indisciplinares não aconteçam na convivência escolar, pois os alunos estarão voltados para suas próprias realidades e inclinados na produção de novas epistemologias. Os esforços dirigem-se para o trabalho coletivo e desafiador onde a aprendizagem é sempre (re)construída, pois o ser humano é, de acordo com Freire, (2017) um sujeito inacabado, em permanente construção.

 

 

Considerações finais

 

 

Como podemos observar, o trajeto que a escola ainda precisa percorrer é desafiador. O complexo cenário escolar mistura-se à sociedade e à cultura dos sujeitos que lá se encontram de forma a não poderem ser dissociados. A indisciplina pode ser um indicativo de que essas estruturas precisam ser transformadas e a interculturalidade precisa ser adotada como indicativo da urgência de serem discutidas as pluralidades de culturas e de sujeitos.

 

 

A palavra em Freire nos direciona para uma escola feita de gente, que não pode ser invisibilizada pela escola nem sufocada pelo monoculturalismo no discurso do status quo. A iniciativa por práticas dialógicas dentro dos espaços escolares (convencionais e não convencionais) precisa permitir que o ensinar e o aprender se misturem e se confundam, sendo todos sujeitos ativos participantes do processo de ensino-aprendizagem.

 

 

Pensar uma educação nesses termos interculturais, de reconhecer as pluralidades e, dessa forma, rever maneiras de serem aplicados conceitos e conteúdos é o que Freire chamaria de pensar certo, onde o caminho para se chegar à conscientização libertadora deve passar pela dúvida, ou seja, pelo direito de questionar, de refletir sua própria existência e, por conseguinte, discutir as relações de poder, o que, dentro do contexto escolar, nos remete às teorias e práticas curriculares distantes dos alunos.

 

 

Paulo Freire, considerado por muitos como subversivo por olhar o oprimido pelo prisma da humanidade, elevou a educação a uma práxis dialógica emancipatória que ultrapassa a senda do mero ativismo e do reprodutivismo. Transformou o ato de educar em uma ação consciente de transformação social, onde escola e mundo se confundem, se misturam e se integram.

 

 

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DESLANDES, Suely Ferreira. F. O projeto de pesquisa como exercício científico e artesanato intelectual. In: M. C. de S. MINAYO (Coord.). Pesquisa social:teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2016.

 

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Rosane Barreto Ramos dos Santos

 

Doutoranda na Fundação Instituto Oswaldo Cruz – IOC/ FIOCRUZ no Programa de Ensino em Biociências e Saúde. Supervisora Educacional da Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC) e Orientadora Educacional da Educação Básica da cidade de Nova Iguaçu.

 

Paulo Pires de Queiroz

 

Cientista Social formado pela UFF e PhD em Filosofia e Humanidades pela Columbia Pacific University/USA – Título reconhecido pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Professor e Pesquisador Associado da Faculdade de Educação na Universidade Federal Fluminense. Professor e Pesquisador nos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu PGCTIn/UFF, PGEBS / IOC / FIOCRUZ e CMPDI / UFF. Autor e organizador de vários livros e artigos científicos publicados nacional e internacionalmente.