História
O DESENVOLVIMENTO DO MUHCAB
Como ágoras modernas de diálogo, museus encontram-se em posição privilegiada para articular questões essenciais sobre a sociedade e encorajar reflexões críticas sobre os legados que lhe dão forma ou dilaceram. É neste contexto que em 2017 expressamos o desejo de construir um museu dedicado à história e legado da escravidão no Rio de Janeiro, o Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira – MUHCAB, entendendo que a iniciativa demanda reflexões e atenção para não banalizarmos tema de tamanha complexidade, que ainda deixa marcas indeléveis no Brasil de hoje. Ciente de tal responsabilidade, pautamos esta iniciativa em uma relação dialógica e transparente com a sociedade.
O Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos, de D. Eltis e D. Richardson, aponta que quase metade de todos os africanos trazidos como escravos para as Américas vieram para o Brasil – cerca de 4,68 milhões. Destes, mais de 2 milhões desembarcaram no Rio de Janeiro, através do Cais do Valongo, entre outros lugares de desembarque. Surpreendentemente, há uma sanitização desta memória no espaço urbano, e ousamos dizer, em nossa memória coletiva e historiografia oficial.
Enquanto muitos locais de significado para a cultura afro-brasileira tenham sido memorializados na região portuária do Rio, como a descoberta do cemitério dos Pretos Novos ou a elevação do Cais do Valongo a Patrimônio Mundial em julho de 2017, estas iniciativas não são suficientes para reconhecer os golpes profundos deferidos por quatro séculos de escravidão contra parte significativa de nossa sociedade, e cujas inegáveis consequências perduram até hoje. Se a escravidão foi abolida há mais de cem anos, é inegável que muitos grilhões permanecem em nosso inconsciente coletivo.
Um museu dedicado à história e legado da escravidão deve problematizá-la e ressignificá-la. Se história da escravidão remete à privação de direitos humanos e cidadania, dá também testemunho da resiliência e indestrutibilidade do espírito humano e agência pessoal. Tratamos estas duas vertentes distintas em suas perspectivas passada e presente na conceituação do MUHCAB, e celebramos suas influências na construção da cultura afro-brasileira pela perspectiva da “unidade na diversidade”. Isto requer compreender que a ação que desumaniza a vítima, desumaniza também aquele que perpetrou a ação desumana. Assim somos todos inegavelmente tocados pelo legado da escravidão de formas visíveis e invisíveis. Reconhecer também que muitos daqueles tocados pelo legado da escravidão não superaram suas consequências, requer que o MUHCAB seja vetor de autoestima, desenvolvimento, oportunidades socioeducativas e impactos duradouros, para toda a sociedade.
O Museu da História e da Cultura Afro-brasileira quer fazer ouvir vozes silenciadas, narrando a história por seus protagonistas. A dimensão de tal projeto só se viabiliza com processos participativos de baixo para cima, rechaçando abordagens curatoriais autoritárias. Desde 2017 nos aproximamos da comunidade local e contamos com o movimento negro e os coletivos negros jovens através da participação de seus integrantes no Conselho Consultivo do MUHCAB, pessoas de notório saber, contratados pela cooperação internacional com a UNESCO e com a sociedade como um todo na construção deste bem cultural comum.
Em março de 2017 ocorreu a criação do Grupo de Trabalho-GT pelo DECRETO RIO Nº 42929 DE 10 DE MARÇO DE 2017 para o desenvolvimento de plano de ação inicial. O trabalho do GT foi iniciado com a etapa de levantamento de fontes documentais, de acervos, de atores sociais e temas, e a preparação da escuta ampliada. Agregou-se ao GT representantes das instituições existentes na região portuária, incluídas no Circuito da Herança Africana instituído em 2011. O IPHAN e o Governo do Estado foram ainda convidados a participar. O resultado dos levantamentos feitos pelo GT foi levado para a Plenária ampliada na Oficina Participativa ocorrida em setembro de 2017, contando comais de 300 integrantes da comunidade afrodescendente.
O Acordo de Cooperação Internacional firmado entre a Prefeitura do Rio, através da Secretaria Municipal de Cultura e a UNESCO em dezembro de 2017 viabilizou a continuidade de projetos, estudos e pesquisas para o desenvolvimento do MUHCAB, iniciados pelo GT. O PRODOC 914BRZ4022, ainda em execução até 2021, visa promover a conservação e a gestão compartilhada do Sítio Arqueológico Cais do Valongo, inscrito na Lista do Patrimônio Mundial, com a criação de um Museu de Território na sua área de amortecimento, considerando a transversalidade entre as instituições municipais e a dimensão estratégica para o desenvolvimento turístico-cultural integrado e sustentável da região portuária da cidade do Rio de Janeiro, com base nos princípios de valorização da memória e da diversidade cultural, acesso amplo aos bens e serviços culturais, preservação do patrimônio histórico e cultural.
No desenvolvimento do Estudo Preliminar, que teve por meta estabelecer os objetivos e parâmetros de viabilidade cultural, social, arquitetônica e financeira da iniciativa, buscou-se referências de melhores práticas nacionais e internacionais, bem como diagnósticos detalhados, a exemplo da análise de públicos e mercado e outros. Na sequência dos trabalhos desenvolvidos, o Plano Institucional foi desenhado, voltado para definição de conceitos geradores, missão, mandato e propósito da instituição, estrutura e arranjo institucional, relações público-privadas e parcerias, e abordagem das linhas programáticas.
O MUHCAB foi definido como um museu de tipologia híbrida: museu de território, museu a céu aberto, de responsabilidade social e museu histórico, situado na Pequena África, tendo como marco zero o Cais do Valongo, Patrimônio Mundial, formado por 2 elementos chave:
1. MUHCAB | Centro de Referência Afro-Brasileiro e Afro-Atlântico – Escola José Bonifácio
2. MUHCAB | Museu a céu aberto / rota histórico-interpretativa pelo território, como um museu vivo, com camadas materiais e imateriais, e dinamizado por suas inter-relações histórico-sociais, entre passado e presente, que estão em constante transformação.
Esses 15 lugares de memória foram escolhidos pela coordenação científica em função das condições urbanas de visita e da sua representatividade para a história e a memória da diáspora africana na Pequena África, no Rio de Janeiro e no Brasil. Esses locais acionam patrimônios culturais e personagens, transformando-se em símbolos e em recursos de interpretação e narrativa. Para todos os lugares de memória criados serão valorizados como eixos interpretativos: o protagonismo dos africanos/africanas e seus descendentes na transformação da dominação e da própria História do Brasil; os movimentos de luta e resistência pela liberdade e cidadania; as estratégias de adaptação, dissidência e insurgência; as possibilidades de afirmação, reconhecimento e orgulho das identidades negras; o nascimento da cultura, dos patrimônios e das religiões afro-brasileiras.
Após a aprovação do Estudo Preliminar com o Plano Conceitual e Institucional validados, novos consultores do PRODOC UNESCO foram contratados em 2020, para a complementação dos projetos para o MUHCAB até 2021, de forma a finalizar e aprovar o Plano Museológico.
Em 12 de maio de 2017 o MUSEU DA HISTÓRIA E DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA foi criado pelo Decreto Municipal Nº 43128/2017, com sede alocada na antiga Escola José Bonifácio, trazendo de volta a importância desse local de memória para a história da cultura Afro-brasileira na cidade. Desde então as portas do MUHCAB estão abertas para a comunidade, com atividades focadas em capacitação, educação e pesquisa. Na programação dessas atividades buscou-se a adequação aos conceitos e diretrizes estabelecidos nos estudos e projetos desenvolvidos pelos consultores da UNESCO e ratificado pelo Conselho Consultivo do MUHCAB, criando diálogo e escuta permanente entre os diversos atores participantes do Projeto de Desenvolvimento do MUHCAB. Desde a data de criação em 2017, o público recebido no MUHCAB já chegou a mais de 40 mil pessoas.