A escola e seus desafios: reflexões sobre o cotidiano do/a professor/a a partir do diálogo entre/com Paulo Freire e Ira Shor

 

 

Certa vez, em idos de 1986, dois educadores (portanto, pesquisadores e pensadores) se encontraram para falar sobre educação, apresentando algumas reflexões acerca da educação brasileira e da estadunidense. Voltando-se para o cotidiano da escola, para as suas próprias experiências e experiências vivenciadas por professores e professoras em seus cotidianos, Freire e Shor (1986) fizeram um movimento teórico-prático, mediado pela práxis, que resulta no que eles chamaram de “livro falado”. Sim, "um livro falado, e não escrito", onde puderam "tratar das ideias, dos fatos e dos problemas, com rigor, mas sempre num estilo leve, próximo ao dos dançarinos, um estilo amistoso" (FREIRE; SHOR, 1986, p. 10). Diante disso, remeto-me aos seus relatos de experiências como forma de ousadia e inspiração, e por meio dos seus diálogos faço um convite a nos darmos as mãos, como numa ciranda. Um cirandeio dialógico, que nos fortalece, nos nutre, nos une na diferença e nos convida a superarmos os medos e sermos ousados na/com/pela educação. Num movimento que se faz coletivamente.

 

 

Portanto, ao mesmo tempo que objetiva trazer à discussão alguns elementos da obra Medo e ousadia – o cotidiano do professor, este ensaio busca refletir sobre o cotidiano da escola e os desafios que incidem sobre ele. Nesse sentido, este texto soa como convite para pensar e problematizarmos os desafios impostos à escola e a professores nesses tempos difíceis de medo, insegurança e aumento das desigualdades sociais. Somos ousados por buscar cotidianamente alternativas para a educação, por reforçarmos a importância do diálogo, da escuta, da solidariedade e do cuidado. Logo, o espírito ousado, de busca e problematização da realidade são bases para a educação libertadora. É nesse sentido que ouso escrever este texto.

 

 

Servindo-me de leituras, do diálogo com Freire e Shor e de algumas conversas de que participei², aprendente que sou, fui ampliando o meu olhar sobre a obra, o que me instigou a pensar nesta escrita e a (re)pensar minha prática. Quero dizer que na minha leitura, que ora compartilho neste texto, Medo e ousadia se situa nos “escritos dialógicos” de Paulo Freire, conforme afirmação do professor Afonso Celso Scocuglia³. Trata-se de um livro que tem como base o diálogo e as experiências de Freire e Shor com educação no Brasil e nos Estados Unidos, respectivamente. Através dele, os dois autores passam a discutir algumas questões que já afligiam a educação na década de 1980, e no decorrer da narrativa passam a nos indagar acerca da realidade, tendo em vista as múltiplas perguntas que eles nos apresentam. É, portanto, um exercício de pensamento reflexivo. Me arriscaria a dizer que são escritos que resultam em/de uma “pedagogia da pergunta”.

 

 

Pensando na riqueza temática da obra, optei por dividir este texto em dois momentos: no primeiro, faço um apanhado geral, privilegiando o diálogo enquanto categoria central. No segundo, dedico-me a principiar um debate sobre a linguagem, compreendendo o papel da linguagem na escola, sobretudo na relação educador-educando.

 

 

 

 

O diálogo mais uma vez em questão

 

 

O diálogo é uma categoria recorrente na obra de Paulo Freire. Não bastasse ele ter tratado do assunto em Pedagogia do oprimido, Educação e mudança e Ação cultural para a liberdade a proposta do livro, das reflexões entre Freire e Shor sugerem o quanto o diálogo é formativo e pode contribuir para pensar o cotidiano do professor e da professora.

 

 

Isso significa dizer que, mais uma vez, ele está colocando em prática o diálogo e apontando que a troca de saberes, de experiências, entre professores e professoras, no cotidiano da escola, pode ser extremamente formativa. Pensando nisso, indago: como têm-se dado as suas conversas com professores e professoras no cotidiano da escola? Que ou quais lições têm aprendido com essas conversas? Teriam elas contribuído com a sua formação?

 

 

A leitura de Medo e ousadia nos convida a indagar a realidade, a conversarmos, mas uma conversa reflexiva, crítica, problematizadora, que não é aquela conversa bancária, fatalista, sobre a escola e os estudantes: “já está reprovado, não tem mais chances”, “mas já foi reprovado no ano passado e, esse ano, continuou do mesmo jeito”, “só faz barulho na sala”, “senta lá no fundão, só leva o tempo em dormir”, entre tantas outras. Trago essas provocações para este texto porque tais afirmações parecem apontar para um distanciamento, uma barreira entre a escola e o seu território, entre os objetivos da escola e os anseios dos/das estudantes. Mas como fazer diferente, se não ou pouco as/os conhecemos?

 

 

Enfim, são múltiplas questões que Freire e Shor nos convidam a pensar e a perceber a atualidade de suas falas, mais de três décadas depois. E porque suas falas nos parecem atuais? Porque muitos dos problemas por eles tratados ainda permanecem latentes na sociedade brasileira. Outros, por sua vez, ganharam novos contornos e formatos, como é o caso do acesso à escola e do cotidiano dos/as professores/as que no contexto atual é atravessado pelo uso e acesso às ferramentas e/ou sinais digitais. Contudo, para melhor problematizá-los volto-me às questões expressas no livro, para algumas categorias que parecem-me centrais: sonho do professor libertador, educação libertadora, transformação, mudança, diálogo, relação do-discente, pedagogia situada, cultura do silêncio, linguagem na/da escola e formação do pensamento crítico (práxis).

 

 

"como têm-se dado as suas conversas com professores e professoras no cotidiano da escola? Que ou quais lições têm aprendido com essas conversas? Teriam elas contribuído com a sua formação?"

 

 

As categorias em destaque soam como um convite a revisitarmos os fundamentos da Pedagogia do oprimido, as distinções entre a concepção bancária e libertadora, o papel do professor nestas duas concepções, e o diálogo como elemento fundante para uma educação que se contrapõe à objetização, docilização e coisificação dos estudantes. Aproximando esta discussão do contexto atual, me parece que, além da questão do acesso, a comunicação se apresenta como um elemento preponderante, como um sinal de ousadia, implicando estratégias ousadas para aprender a lidar com novas ferramentas digitais e com o excesso de informações por elas veiculadas. Com isso, o cotidiano de professores e professoras acaba sendo afetado, especialmente em função da precariedade das políticas de formação docente.

 

 

Atento para o fato de que, como numa espécie de “pedagogia da pergunta”, Freire e Shor nos apontam a pergunta, a indignação, a escuta atenta, o diálogo e a reflexão sobre as experiências como caminhos provocadores de mudança no âmbito da educação. Sobre este assunto, Pischetola (2019, p. 36) afirma que “no entendimento da aprendizagem como um processo ativo, que depende do sujeito e sua interação com o ambiente, a pergunta é o elemento central”.

 

 

Assim, como forma de suscitar o diálogo, a cada capítulo os autores nos apontam que o caminho para uma educação libertadora, problematizadora, passa pela pergunta. Ela abre veredas para outras perguntas, para respostas, nos incita a parar, pensar, (re)criar e (re)formular ideias. É entre perguntas e respostas que o diálogo acontece, que dois sujeitos "A e B", "Eu e Tu" se encontram e passam a problematizar a sua prática. Como bem disse Shor “a educação dialógica enfatiza o desenvolvimento de relações democráticas na escola e na sociedade” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 77). Nesse sentido, a "pergunta", a "problematização" e a "curiosidade epistemológica”, elementos essenciais para uma pedagogia libertadora, tornam-se o ponto de partida e de chegada para a construção do pensamento crítico. Isto porque as perguntas contribuem para nos deslocarmos, funcionando como um convite a olharmos para as nossas experiências e as das outras pessoas, para problematizar e pensarmos o cotidiano, aprendendo com todos esses processos.

 

 

Diante de tantas questões, Freire e Shor apontam que o sonho de uma educação libertadora se fundamenta numa perspectiva crítica e dialógica, capaz de aproximar a teoria do cotidiano e transformar o cotidiano em teoria, à medida que cria, recria e problematiza a realidade, transformando-a pela participação e pela ação coletiva. Isso significa dizer que a teoria, essencial para a ação educativa, é entrelaçada por experiências do cotidiano, a partir de uma relação pessoa-mundo, local/universal. Daí a importância da "cultura local" no pensamento de Paulo Freire, das leituras de mundo e das experiências vividas no cotidiano, na relação escola-comunidade.

 

 

No decorrer do livro Medo e ousadia, Freire e Shor fazem várias indagações acerca da realidade das escolas, das forças que incidem sobre ela como o currículo, da questão da motivação dos estudantes, convidando-nos a pensar a sua organização. A escola que temos é ideal para as/os estudantes? Suas falas expressam uma crítica à concepção tradicional (clássica) de currículo (SILVA, 2010), com suas formas verticalizadas, generalistas, distantes do cotidiano e, em contrapartida, apontam para uma concepção crítica que leve em consideração as vozes dos professores e professoras, ou seja, uma construção horizontalizada, pautada na interrelação do local com o universal, dos saberes do cotidiano com os conhecimentos gerais. A propósito, é um livro no qual encontramos várias referências à questão do currículo, que de certo modo contribui com a discussão de Paulo Freire ser um dos autores vinculados à concepção crítica de currículo, conforme sugere Henry Giroux (1997).

 

 

Em síntese, Medo e ousadia foi construído com base em perguntas: “Como pode o professor transformar-se num educador libertador?” “De que modo a educação se relaciona com a mudança social?” “Quais os temores e os riscos da transformação?” “Existe estrutura e rigor na educação libertadora?” Fundamentando-me nos dois autores, à medida que leio o livro, começo a pensar nas inúmeras possibilidades que ele nos traz: por exemplo, a de realizar rodas de conversa, de pensar/discutir o cotidiano da escola com as professoras e os professores, algo que nem sempre acontece. As experiências por vezes são silenciadas. Além disso, os tempos da escola, do currículo, e o foco na avaliação muitas vezes impossibilitam a troca de experiências o que, de certo modo, também interfere na formação.

 

 

Nesse sentido, as perguntas destacadas acima são um convite à conversa, pois nos instigam a revisitar as bases epistêmicas e filosóficas da pedagogia libertadora, que compreende a educação como um ato político, crítico e criativo. Bases estas que também servem como fundamento para a concepção crítica de currículo, conforme destaquei anteriormente.

 

 

"Freire e Shor fazem várias indagações acerca da realidade das escolas, das forças que incidem sobre ela como o currículo, da questão da motivação dos estudantes, convidando-nos a pensar a sua organização"

 

 

Frise-se que em vários momentos as falas de Freire e Shor se voltam à relação professor-aluno, que é interpelada pelo o diálogo. Diante disso, outras perguntas norteiam o texto: “As classes dialógicas tornam iguais professores e alunos?” “O que é o método dialógico?”. Mais para o final do livro, indagam “O que é uma ‘pedagogia situada’ e ‘empowerment’?” “Existe uma ‘cultura do silêncio’ nos EUA? Os alunos norte-americanos, vivendo numa democracia abastada, precisam de libertação?” “Como podem os educadores libertadores superar as diferenças de linguagem existentes entre eles e os alunos?” “O sonho da transformação social: como começar segunda-feira de manhã?” “Temos o direito de mudar a consciência dos alunos?” Confesso-lhe que, ao revisitar essas perguntas, reflito sobre o quão interessante seria discuti-las no cotidiano da escola, à luz da experiência das/os professoras/es.

 

 

Pensando assim, Medo e ousadia parece-me suscitar uma pergunta ao professor e à professora: como tem-se dado a sua relação com o cotidiano? O que tem aprendido com ele? A relação teórico-prática, base da educação libertadora, implica este olhar. Um olhar desafiador, por vezes ousado, que, por isso, pode nos causar medo. Contudo, é importante lembrar que o medo nem de todo é ruim. Ele muitas vezes funciona como pausa para uma reflexão, como um convite a nos indagarmos, a nos depararmos com as nossas questões e a analisarmos as nossas práticas. Mas, existe o medo que nos paralisa, que nos causa dor, que nos impede de caminhar. Este merece ser problematizado, analisado, trabalhado, pois é um medo que silencia, que pode nos causar pânico: já pensou no estudante com medo da prova? E com medo da reprovação? Ou ele se desafia ou fatalisticamente se acomoda, numa espécie de "está tudo consumado", nada mais tenho que fazer, "irei repetir de ano". Por outro lado, encontramos professores angustiados/temerosos, correndo contra o tempo para conseguir “passar” (dar conta de) todo o conteúdo programático. Enfim, “repetir de ano” implica repetição de conteúdos e, por conseguinte, de sentidos (ou falta de sentidos) para os estudantes. Mas essa é outra questão. Quiçá este texto possa provocar algumas discussões, em diálogo com as experiências cotidianas.

 

 

 

 

O medo da língua-padrão e a ousadia da linguagem libertadora

 

 

"O chamado ‘padrão’ é um conceito profundamente ideológico, mas é necessário ensinar a sua utilização enquanto se criticam, também, suas implicações políticas."

 (Freire e Shor, 1986)

 

 

Entre os vários aspectos abordados por Freire e Shor (1986), já apresentados neste texto, volto-me agora para uma discussão a respeito da linguagem. Afirmo que estou principiando neste assunto, no âmbito desta obra, por considerar que se trata de uma temática ampla, que requer outras discussões, desdobramentos e aproximações teóricas, especialmente com Bakhtin (1988) que discute a questão de filosofia da linguagem e seu caráter ideológico. A respeito deste assunto, fundamentei-me em Nunes e Kramer (2011), no artigo intitulado "Linguagem e alfabetização: dialogando com Paulo Freire e Mikhail Bakhtin" e em um texto por mim produzido sobre "A importância do “ato” de ler em Paulo Freire e Bakhtin" (OLIVEIRA, 2021).

 

 

Assim, a partir de leituras e da escrita apresento aqui intenções de pesquisa, rascunhos, retalhos que vou costurando dia após dia, a partir de um exercício práxico. Compartilho-os na ânsia de que meus interesses de leitura possam despertar outros leitores e outras leitoras, por acreditar no “saber solidário” e porque sou uma espécie de “pescador de referências”. À medida que leio, pelas referências, vou ampliando a minha rede, os autores e autoras com os/as quais dialogo.

 

 

Após este prólogo, retomo a discussão a respeito da linguagem, pois enquanto professor de Língua Portuguesa, em vários momentos me pego a pensar a respeito do papel da linguagem, e em como ela impacta o cotidiano da escola e o processo ensino-aprendizagem. Em primeiro lugar, embora os autores empreguem a linguagem no singular, compreendo-a no plural, visto que existem múltiplas linguagens. Mas compreendo também que no contexto da década de 1980, quando a obra foi escrita, empregava-se um conceito único. Portanto, neste texto, ora ela estará no singular, ora no plural.

 

 

Destaco que, metodologicamente, a partir de leituras da obra, fui mapeando o conceito de linguagem (compreendendo-a como uma palavra geradora deste texto), que é referenciado 166 vezes pelos dois autores. Este mapeamento se deu com o auxílio do programa Adobe Acrobat (PDF), através do menu Localizar – palavras inteiras. Após fazer o apanhado, fui anotando as incidências do conceito “linguagem” no decorrer do texto, selecionando algumas partes para esta discussão. Portanto, é um assunto que não se encerra aqui, pois abre outras possibilidades de escrita, de refletir com professores/as.

 

 

Parto da premissa de que o olhar para o cotidiano da escola implica também refletir sobre a linguagem: será que a linguagem trabalhada pela escola, pelo professor ou pela professora, vem sendo compreendida pelos/as estudantes? Esta parece ser uma questão central, porém muitas vezes esquecida no contexto das escolas. Refletindo sobre a mesma, retomo algumas falas e conceitos empregados por Freire e Shor (1986) acerca da linguagem.

 

 

Ao refletirem sobre a questão da linguagem a partir de dois olhares, de duas experiências, nos EUA e no Brasil, os autores fazem referência à linguagem da seguinte forma:

 

 

Quadro 1 – Problematizando o conceito de linguagem

 

 

Fonte: elaboração própria, 2021.

 

 

Inspirado em Freire e Shor, o quadro acima buscou sistematizar mapear o conceito de linguagem e anseia ressaltar a sua importância no contexto da escola. Antes de qualquer juízo de valor, não é intenção deste estudo abolir o chamado “padrão”, mas discutir outras possibilidades, outros caminhos para poder chegar até ele. A questão é que, em geral, ocorre o processo inverso: a negação da “linguagem do cotidiano” em detrimento do padrão, resultando em uma barreira entre a linguagem adotada pela escola e a linguagem dos estudantes. Esta diferença de linguagens reflete uma questão social, logo, ideológica. Há um determinado grupo social que pensa e determina a linguagem a ser ensinada, e outro grupo que a receberá. E, no meio disso, professores e professoras. Portanto, para além da linguagem, pode-se inferir que a pouca ou nenhuma participação de professores e professoras na elaboração dos currículos escolares pode contribuir para este distanciamento entre a linguagem do currículo e a do cotidiano, sobretudo quando este se pauta por uma perspectiva clássica. Hoje, poderíamos dizer que os currículos escolares e as avaliações em larga escala são determinantes no tipo de linguagem adotada pela escola? Enfim, uma questão para pensarmos.

 

 

Em sua fala com Freire, Shor afirmou:

 

 

Nós, professores, passamos muitas horas desesperadoras diante de estudantes silenciosos que nos fitam imóveis. Também passamos inúmeras aulas ouvindo os estudantes repetirem nossa própria linguagem professoral. Se não ouço ou não leio a autêntica linguagem-pensamento deles, sinto-me prejudicado por não poder começar a pesquisar sobre seus assuntos e seus níveis de desenvolvimento. (FREIRE; SHOR, 1986, p. 14, grifo meu)

 

 

Partindo desta premissa, “a autêntica linguagem pensamento” das(dos) estudantes parece se colocar diante de nós – professores e professoras – como um desafio, pois se não os ouvimos, se não conhecemos a sua realidade, os seus hábitos, seus gostos, suas músicas, sua dança, raramente falaremos a sua linguagem. Resta, então, a “linguagem professoral”, conteudista, certamente já reprovada um dia ao longo da trajetória como educando. Shor destacou ainda que:

 

 

Muitos professores já se consideram frustrados no desejo de conseguir que os alunos pensem criticamente. Um dos problemas é que o material que o professor apresenta desorienta os alunos. Quase sempre, é escrito em linguagem acadêmica, uma língua que eles não usam. Trata quase sempre de temas irrelevantes às suas experiências e que não estão sincronizados com o ritmo perceptual da cultura de massa, um ambiente eletrônico e acelerado (FREIRE; SHOR, 1986, p. 16, grifo meu).

 

 

As falas do autor, de certo modo, refletem a frustração de professores e professoras, diante do desafio de ensinar: de um lado, os materiais didáticos, livros com uma linguagem distante da realidade dos(das) estudantes; de outro, estudantes desinteressados(as) pelos assuntos que não condizem com a sua realidade. O que lhes resta? Usar a sua linguagem para falar de outras coisas, de outros assuntos. Silêncio! Mas se a família, a religião, já silencia, também a escola irá silenciar? Estou ciente de que algum leitor pode indagar-me, mas qual o caminho? Não acredito que haja um caminho, mas possibilidades. Uma delas é, ao invés da imposição, a conquista; ao invés de verticalizar os temas, horizontalizá-los, partindo do local para o global, da problematização à compreensão da realidade, pois é nela que a linguagem se forja. A partir disso, “estudar sua linguagem e sua realidade junto com eles” pode ajudar a descobrir outros caminhos e possibilidades de trabalhá-la(FREIRE; SHOR, 1986, p. 20). De que músicas gostam? A quais filmes já assistiram e do que falavam? O que fazem nas horas livres? Enfim, as perguntas são os caminhos: “O uso de perguntas é muito útil para a aprendizagem não somente do aluno, mas também do professor” (PISCHETOLA, 2019, p. 38). Mas a escola parece estar mais preocupada com a resposta do que com as perguntas.

 

 

Sobre esse assunto, a fala de Shor nos lembra que:

 

 

A vida e a linguagem dos estudantes eram textos sociais que nem eles nem eu entendíamos, mas que me apresentavam modelos, motivos, temas, personagens, e imaginário, como pistas para seu significado. Assim, tudo somado, talvez tenha percebido que os professores eram uma janela e um caminho para os alunos, para que vissem suas próprias condições e vislumbrassem um destino diferente. O rosto e a fala do professor podem confirmar a dominação, ou refletir possibilidades de realização (FREIRE; SHOR, 1986, p. 21-22, grifo meu).

 

 

Em seu diálogo com Freire, Shor critica a instauração da “linguagem do professor como único idioma válido dentro da sala de aula” (Idem, p. 21). Isso porque, à medida que o professor se coloca nessa posição, ele se fecha ao diálogo com os alunos, fundamentando-se apenas em perguntas feitas pelo professor e respostas dadas pelos alunos. Mas será que a “linguagem professoral” foi compreendida? Ao analisar a sua experiência, Shor chegou à seguinte conclusão:

 

 

Minha linguagem importava, mas a deles também. Minha linguagem mudou e a deles também. Essa democratização da expressão estabeleceu uma atmosfera comum que encorajava os estudantes a falarem abertamente, sem temer o ridículo ou o castigo por serem "burros”. Gostaria de poder reproduzir para você a surpresa que demonstravam cada vez que eu me interessava por suas palavras, pela sua cultura (FREIRE; SHOR, 1986, p. 21, grifos do autor).

 

 

 

 

A citação em destaque expressa um convite a refletirmos sobre a nossa linguagem com as(os) estudantes, no sentido de construir possibilidades de um aprendizado baseado na troca de saberes, no diálogo, na pergunta, no ato criativo. O interesse pelos/as estudantes, por suas histórias, por seus gostos, por suas motivações, enfim, por suas palavras se apresenta como um caminho para quebrar a barreira muitas vezes provocada pela linguagem empregada em sala de aula: distante do cotidiano da escola.

 

 

Sobre esse assunto, Freire (1986) ressalta que a observação dos estudantes, o diálogo, as estratégias de ensino adotadas nos ajudam a adaptar a nossa linguagem (muitas vezes com marcas acadêmicas) aproximando-a a linguagem dos/as estudantes. Ou seja, é um movimento que nos leva – pela linguagem – a nos aproximarmos deles/as, de sua realidade, para então contribuirmos para que façam outras leituras de mundo. Mas, considerando o contexto de desigualdade social que impacta a vida das(dos) estudantes, a apropriação do “padrão” torna-se imprescindível, de modo que passe a questioná-lo, tensioná-lo (educação crítico-libertadora) ou simplesmente a se adaptar ao mesmo (educação bancária).

 

 

Ao tratar do seu trabalho como educação de adultos, Freire destaca: “foi aí que aprendi, na minha relação com eles, que eu deveria ser humilde em relação a sua sabedoria. Eles me ensinaram, pelo silêncio, que era absolutamente indispensável que eu unisse meu conhecimento intelectual com sua própria sabedoria” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 25). Nesta fala do autor, destaco três pontos que considero significativos: o silêncio enquanto linguagem; a compreensão do papel da escuta no processo ensino-aprendizagem, escuta esta que não é somente por parte dos alunos, mas reciprocamente; e, por último, a superação da dicotomia entre conhecimento intelectual e saber popular, saber da experiência. Em ambos os casos a linguagem assume uma posição de destaque e contribui para a seguinte reflexão:

 

 

Ensinaram-me, sem nada dizer, que eu nunca deveria dicotomizar esses dois conjuntos de conhecimento: o menos rigoroso do muito mais rigoroso. Ensinaram-se, sem nada dizer, que sua linguagem não era inferior à minha. A sintaxe que usavam era tão bela quanto a minha, quando eu analisava sua estrutura e a ouvia. Claro que eles nunca poderiam dizer o que os analistas críticos sabem sobre linguagem e classe social, mas me introduziram na beleza da sua linguagem e sabedoria, através do seu testemunho, e não através de relações sobre essas coisas (Idem, p. 25).

 

 

Embora neste contexto Freire esteja discutindo a partir de sua experiência com pessoas adultas, ressalto que no trabalho com qualquer público ou em qualquer etapa da educação temos muito o que aprender com as(os) estudantes. Porém, abrir-se a este aprendizado implica humildade, um comprometimento ético e estético com a outra pessoa. Por isso, muitas vezes, é necessário rever as estratégias de trabalho, reinventar as práticas, subverter os materiais didáticos prontos. Acredito neste movimento que parte do cotidiano dos/das estudantes, a fim de explorar outros contextos e realidades, ampliando a sua leitura de mundo e, por conseguinte, a sua linguagem.

 

 

Pensando nisso, Shor destacou “Isto faz com que seja necessário que o professor adote uma atitude muito experimental em suas aulas. Mas a atitude experimental é comum a todas as políticas de transformação” (Idem, p. 40). Partindo dessa premissa, o autor nos desafia a pensarmos as nossas estratégias de ensino, o papel que a linguagem desempenha nelas e a compreensão de que experimentar implica criar, pesquisar, ousar fazer com os/as estudantes.

 

 

Enfim, estes são alguns apontamentos de como o professor libertador lida com a questão da linguagem e o seu olhar sobre o cotidiano. Esta é uma discussão que atravessa a obra, que ao revisitar a Pedagogia do Oprimido (quase 20 anos depois) traz à discussão os desafios de uma educação libertadora-crítica-dialógica-humanizadora.

 

 

Para finalizar este momento, retomo às palavras de Freire:

 

 

Se o professor libertador quer ensinar competentemente, deve conhecer bem o critério da elite através do qual a linguagem é valorizada. É um critério de linguagem difícil de ser alcançado pelas pessoas comuns de baixa extração econômica – algo que o professor libertador aceita, sem culpar os estudantes pelos seus erros de utilização da língua. Ao entender os aspectos elitistas e políticos do uso padronizado da língua, o professor libertador evita culpar os estudantes pelo choque entre sua própria linguagem e as formas em vigor. (FREIRE; SHOR, 1986, p. 48-9, grifos meus).

 

 

 "O interesse pelos/as estudantes, por suas histórias, por seus gostos, por suas motivações, enfim, por suas palavras se apresenta como um caminho para quebrar a barreira muitas vezes provocada pela linguagem empregada em sala de aula: distante do cotidiano da escola."

 

 

Partindo desse pressuposto, o excerto em destaque nos aponta para três aspectos que considero importantes: a valorização das múltiplas linguagens, reconhecendo-se as diferenças entre a linguagem “padrão”, culta, e a popular; a importância de uma discussão sobre os fatores sociopolíticos e culturais que atravessam o cotidiano da escola e a linguagem como possibilidade de construção, e não apenas de dicotomização entre o “certo” e o “errado”. E como uma escrita-reflexão, em diálogo com Freire, apresento as seguintes questões: “Quando foi que uma certa forma de gramática passou a ser a “correta”? Quem é que chamou a linguagem da elite de linguagem padrão?” (Idem, p. 33, grifo dos autores). Logo, espero que a escrita deste texto, bem como a linguagem por mim empregada sirvam como fator motivador para a leitura de Medo e ousadia – o cotidiano do professor e para refletir sobre as questões por ela suscitadas.

 

 

Ante o exposto, concluo que a discussão aqui proposta ensaiou alguns caminhos para pensar questões importantes que atravessam o cotidiano da escola e, por sua vez, dos professores e professoras. Tomando como referência o livro Medo e ousadia – o cotidiano do professor, escrito por Paulo Freire e Ira Shor, busquei, em linhas gerais, apresentar a obra, destacando o papel da pergunta, da troca de experiências entre professores e professoras, do diálogo e, sobretudo, do papel da linguagem na sala de aula. Portanto, como sugeri no decorrer do texto, sobre a experimentação, a criatividade, trata-se de uma escrita experimental, criada a partir de uma interlocução entre teoria e prática.

 

 

Notas:

 

 

[1] “O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001”.

 

“This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001”.

 

[2] Destaco aqui a participação no Café Paulo Freire Bahia, em uma live na Secretaria de Educação de Maricá (RJ) e em outra na Escola de Formação de Professores Paulo Freire da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-Rio), onde participei como convidado discutindo o livro Medo e ousadia – o cotidiano do professor, escrito por Paulo Freire e Ira Shor.

 

[3] Referência à Jornada Paulo Freire Sim, aula 4/4 – Medo e ousadia, realizada pelo Instituto Paulo Freire. A participação na referida jornada deu-se no ano de 2020 e está disponível no site do instituto: https://cursos.unifreireonline.org/jornada-paulofreire-sim-38d4f067-50ea-4604-b220-f1a02b16e6b2

 

 

 

Referências

 

 

BAKHTIN, M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.

 

FREIRE, Paulo; NOGUEIRA, Paulo. Que fazer: teoria e prática em educação popular. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

 

FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia:  o cotidiano do professor. Tradução de Adriana Lopez; revisão técnica deLólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1986. (Coleção Educação e Comunicação, v. 18).

 

GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Trad. Daniel Bueno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

 

NUNES, Maria Fernanda R.; KRAMER, Sonia. Linguagem e alfabetização: dialogando com Paulo Freire e MikhailBakhtin. Revista Contemporânea de Educação, v. 6, p. 26-47, 2011.

 

OLIVEIRA, Carlos César de. A importância do “ato” de ler em Paulo Freire e Bakhtin. In: Seminário Processos Formativos e Desigualdades Sociais (5: 2021: Rio de Janeiro). Trabalhos apresentados. Niterói: Intertexto, 2021. p. 356-63.

 

PISCHETOLA, Magda. Perguntas: mobilizando uma metodologia ativa. Novamerica. n.161, jan.-mar. 2019, p. 34-8. Disponível em: http://www.novamerica.org.br/ong/?p=586.  Acesso: 15 jan. 2022.

 

SILVA, Tomás Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.  3. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

 

 

 

Carlos César de Oliveira

 

Doutorando em Educação pela PUC Rio. Atualmente, atua como Educador Popular no Pré-Vestibular Popular Conceição Evaristo, Revisor Textual e Assessor Nacional da Pastoral da Juventude do Meio Popular. Participa do Centro de Estudos e Pesquisas Freireanos - CEPF - UFU e do Café Paulo Freire Goiás.