O CORREDOR DE SONHOS – O DESENROLAR DE UMA HISTÓRIA

 
 

Certo dia, ao sair de casa sem meu guarda-chuva, caminhando pela rua e pensando na vida, enfrentei uma tempestade de ideias do meu cotidiano escolar que agora conto a vocês.

 

Chego à escola, caminhando pelo corredor, com todo o meu planejamento guardado na pasta, quando Saulo me para e pergunta:

 

— Essa escola é de livros e cadernos?

 

Fico meio surpresa com a pergunta e respondo:

 

— Como assim? Livros e cadernos? Todas as escolas têm livros e cadernos, não têm?

 

— Sim, eu sei — diz ele —, mas as escolas por onde passei só tinham isso. E eu escutava muito que ali era um lugar por onde tinha que passar pra alcançar os meus sonhos!

 

— Conta mais sobre essas escolas — peço.

 

— Naquela que eu estudava, só fazia dever e não podia correr. E eu era um grande corredor, corredor de sonhos... — diz.

 

— Corredor de sonhos? — pergunto. Me explica como é ser um corredor de sonhos...

 

Nesse momento, Saulo se senta no banco da escola, me chama pra perto e começa o desenrolar de uma história. Na hora, me vêm os pensamentos de Paulo Freire, que tomam meu corpo: “Talvez seja este o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se” (FREIRE, 2005, p.10).

 

 

"Naquela que eu estudava, só fazia dever e não podia correr. E eu era um grande corredor, corredor de sonhos...".

 

 

 

 

Só para situar todo esse contexto: Saulo foi a criança que chegou à pré-escola onde eu trabalhava cheio de vida, brilho nos olhos e peraltice de criança. Corria como o vento. Era ligeiro, menino arteiro, gostava de desenhar, pintar, cantar como os passarinhos e contar suas histórias, mesmo sem pé e cabeça, viajando nas asas da imaginação. Vinha de família humilde, sonhava ser jogador de futebol, como os craques do seu time de coração.

 

Assim como Paulo, Saulo era uma criança que acreditava nos sonhos de menino. Na escola, adorava o contato com as artes e, através delas, criava, modelava, construía e reconstruía. Na massa que modelava, amassava um sonho de menino que começou a se deparar com um modelo educacional, marcando suas experiências de vida.

 

Enquanto Freire escrevia as primeiras letras com um graveto no chão do seu quintal, observando tudo ao redor — árvores balançando, folhas caindo, formigas caminhando e carregando seu alimento, nuvens se formando no céu —, Saulo ia crescendo e se informando do mundo.

 

Junto com os colegas, memorizava as letras fixadas na parede da sala de aula, contemplando aquele espaço na execução de todas as formas. O que era preciso para construir sentidos? Aquele que adorava usar as mãos e que, com toda a destreza, modelava e conversava com o seu imaginário, agora, sem usá-las, permanecia estático, repetindo movimentos para guardá-las na memória. Que memória?

 

Anos e anos se passaram e Saulo ainda continua a contemplar as letras da mesma forma que antes, com a esperança de ainda vê-las como Freire.

 

Saulo já não corre como antes, mas ainda continua sonhando. Não mais em ser um jogador, mas em ter uma vida digna, onde os estudos, agora na EJA, possam despertar-lhe sonhos adormecidos, buscando conquistar seus direitos e cidadania.

 

 

 

"Então, como desenvolver um trabalho sem livros e cadernos? Como você sonha essa escola? O que podemos construir juntos nesse espaço coletivo?"

 

 

Nesse momento, lembro-me de outro pensamento de Paulo Freire: “A leitura do mundo, precede a leitura das palavras”. (FREIRE, 1989, p.12).

 

Na minha inquietude diante dessa ruptura, ele volta à escola, lugar de conhecimento. Acredita no poder da educação para as mudanças. É preciso acordar para mudar! Transformar! E eu pergunto:

 

— Então, como desenvolver um trabalho sem livros e cadernos? Como você sonha essa escola? O que podemos construir juntos nesse espaço coletivo?

 

— Podemos ler mais os livros que ficam guardados e empoeirados nas estantes da sala de leitura – diz.

 

— Mas não foi você que falou que não queria uma escola de livros e cadernos? – insisto.

 

— Ah, esses livros de trabalho, com exercícios para responder? Cadernos para copiar, fazer trabalhos, responder perguntas para a correção da professora? Não! Estou falando dos livros com as histórias contadas como as minhas, imaginadas e criadas por tantos outros. São essas que nos fazem pensar e não só executar.

 

 


 

Aqui me deparo novamente com as palavras de Freire: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor. Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 2003, p. 47).

 

Com a fala de Saulo imbricada nos pensamentos de Freire, permito-me refletir sobre esse lugar de construção de conhecimento, de relações, interações, diálogos e diversidade, onde verdadeiramente nos desenvolvemos e nos envolvemos. Somos frutos de uma memória viva que permite reflexões que nos movem para mudar ou permanecer.

 

Na pandemia não tivemos a opção de permanecer, a mudança foi mais do que necessária. Dialogamos através de telas, sem mãos tocadas. Apenas olhares distantes ou próximos, dependendo de cada um, nas diferentes vozes emudecidas ou frisadas por nossos colegas. As tecnologias se tornaram um meio para viabilizar o trabalho da escola. E esse processo de ensino-aprendizagem potencializou conhecimentos para uns; para outros, virou a própria pandemia. Nesse pesadelo, sonhos e vidas se interromperam, direitos foram negados.

 

 

"Somos frutos de uma memória viva que permite reflexões que nos movem para mudar ou permanecer”.

 

 

Onde estão os livros e os cadernos? Onde está você, professor? Onde está você, estudante?

 

E assim o tempo passou. A tecnologia se fez tão presente que nos reinventamos em meio à pandemia. São esses os novos tempos, que exigem de nós uma nova escola, outras práticas, outras avaliações, outros contextos.

 

— Então, professora, estou buscando os livros de leitura para ler, sonhar... Me dê um sinal para eu me conectar! – diz.

 

Saulo é estudante da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro desde a Educação Infantil. Hoje está matriculado no Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA).

 

Sonha ser representante do grêmio estudantil, debater com todos os seus pares sobre as necessidades da escola e as demandas da vida contemporânea. Continua a desejar, sentir, relacionar, criar, expressar, indagar, argumentar, sonhar ... esperançar. Na corrida pela vitória!

 

 

“Eu acho que uma das coisas melhores que eu tenho feito na minha vida, melhor do que os livros que eu escrevi, foi não deixar morrer o menino que eu não pude ser e o menino que eu fui, em mim.”

(Freire, 2001, p. 101)

 

 

Referências

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

 

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados; Cortez, 1989.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Unesp, 2001.

 

 

 

 

 

Flávia Cota

 

Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ), é professora da Rede Municipal de Ensino há 20 anos. Atua como Professora Orientadora do PEJA da Escola Municipal Professor Lourenço Filho e na Escola de Formação Paulo Freire.

 

 

Magda Albuquerquer

 

Pedagoga pela UERJ, Pós-graduada em Psicopedagogia (UCAM) e com Especialização em Saberes e Práticas na Educação Básica (UFRJ) é professora da Rede Pública Municipal de Ensino do Rio de Janeiro desde 1992. Já atuou na GED/2ªCRE e na Gerência de Alfabetização do Nível Central da SME. Desde 2019, trabalha na Escola de Formação Paulo Freire.