Freiriana

 

 

 

 

A contação de histórias no fazer teatral nasce do desejo de instaurar uma atmosfera poética (VIDOR, 2020) no cotidiano das aulas. Diante do desafio desse novo formato, histórias do mundo, canto, música corporal e jogo dramático foram elementos trazidos para a telinha das salas no Zoom, onde ocorreram as oficinas. Com o convite à escuta do que foi posto em jogo (MASSCHELEIN e SIMONS, 2015) nas aulas e com a consciência da importância de uma abordagem antirracista e decolonial (MIGNOLO, 2008; KRENAK, 2020; RIBEIRO, 2017) na educação, surgem as inquietações: Como o teatro pode contribuir com a luta contra a reprodução das discriminações estruturais na sociedade? E como fazer das aulas de teatro um campo de escuta e criatividade para o(a) professor(a) e estudantes?

 

 

 

 

Nessa perspectiva, foram compartilhadas histórias do mundo, com ênfase nos contos africanos e indígenas. Amparada pela obrigatoriedade do ensino das histórias africana e indígena prevista na LDB Nº 11.645/2008, busco caminhos artísticos em sala de aula que dialoguem com a pedagogia do oprimido, autonomia e “esperanças” (FREIRE), no intuito de repensar e ressignificar nossas origens, nossa história e nossa sociedade atual. A falta de conhecimento sobre si mesmo(a) no mundo, o apagamento da memória e da herança cultural alimentam a marginalidade, porque muitos dos sujeitos que protagonizam esse fazer foram e são subalternizados pelas instituições à margem, fora do modelo vigente – modelo este inventado por uma elite patriarcal, branca, heterossexual, cristã e europeia. Acredito que não há pedagogia neutra (FREIRE), uma vez que ensinar é também um ato político e não se limita apenas ao ato do conhecimento. Reside na contação de histórias o exercício de escutar, elaborar e contar. Diferentemente do(a) contador(a) de histórias tradicional – que nasce e exerce essa função na sua comunidade como parte de sua cultura e no seu dia a dia –, percebi-me como professora de Teatro, escolhendo essa linguagem para me aproximar, de forma sensível, dos(as) estudantes.

 

 

“Reside na contação de histórias o exercício de escutar, elaborar e contar.”

 

 

Em um primeiro momento, essa prática surge fortalecendo e estimulando a relação entre quem conta e quem ouve em sala de aula. Segundo o professor Jorge Larrosa (2006), ao iniciar uma leitura, ocorre um duplo devir – o de quem fala e o de quem escuta. Na oficina de teatro, a leitura em público se deu em momentos de compartilhamento de uma história com a utilização do livro. Houve também a escuta advinda da narração de história realizada por mim, com cantos e instrumentos percussivos, vídeo e aulas-live com artistas-contadores convidados. Assim foi produzido um repertório de dez histórias e cada estudante escolheu uma para narrar, com liberdade de composição: apenas a palavra, palavra e objeto, palavra e música, apenas música, dentre outras possibilidades. Dessa forma, o envolvimento dos(as) estudantes com a linguagem ofertada trouxe experiências de narrativas diversas como, por exemplo, a utilização do jogo projetado (utilização de objetos como personagem), trazido e apresentado pelo professor e pesquisador Peter Slade (1978), um dos pioneiros do estudo de teatro para crianças.

 

 

 

 

Nesse processo surgiram reflexões e diálogos sobre a diferença entre narrador e personagem, contação de histórias e teatro. O trabalho dos estudantes com a narrativa trouxe um aspecto muito relevante neste processo de ensino da arte: uma articulação de pensamento e comunicação com vocabulários próprios, assim como a reflexão sobre materialidades utilizadas para a composição da narrativa. Há narradores e narradoras que usam apenas a palavra; outros(as), misturam palavra e sonoridades; outros(as), ainda, trazem bonecos, instrumentos musicais, cantam a história e se aproximam da performance. Segundo o filósofo, sociólogo e ensaísta Walter Benjamin (2018), reside na prática da contação de histórias algo além da arte, algo que se aproxima de uma dignidade, onde a sabedoria do conto se revela na própria narrativa.

 

 

Uma das histórias que se destacou foi O amigo do rei, de Rute Rocha, trazendo novas referências de reis e príncipes, que não somente as de matizes eurocêntricas. Os dois personagens principais, um menino escravo e um menino patrão, amigos desde a infância, encontram seus lugares de fala na luta contra a escravidão. A história desconhecida até então dos(as) estudantes e recontada por Arthur Pontes, 9 anos, ganhou uma narrativa pessoal, com os personagens desenhados no palito, assim como todo o cenário por ele criado. Diálogos e improvisações sobre os personagens, sobre os locais da cena como a fazenda, floresta, senzala e quilombo, sobre medo e coragem permearam o processo. Assim, a atuação se deu num território base de ensino-aprendizagem, colaborando com a construção do imaginário, a memória e a identidade dos(as) estudantes, via telas digitais.

 

 

 

“Reside na prática da contação de histórias algo além da arte, algo que se aproxima de uma dignidade, onde a sabedoria do conto se revela na própria narrativa.”

 

 

Acesse: https://youtu.be/vmH4g__JKEk

Referências

 

BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. São Paulo: Hedra, 2018.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2019.

 

LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

 

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

 

MASSCHELEIN, Jean, SIMONS, Marteen. Em defesa da escola: uma questão pública. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

 

MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n. 34, p. 287-324, 2008.

 

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

 

SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978.

 

VIDOR, Heloise Baurich. Sobre as materialidades nas aulas de teatro: vestígios do drama na prática de uma professora-artista. Ouvirouver, 16(2), p. 375-91, Uberlândia, jul.-dez. 2020.

 

 

 

Chayene Torres

 

Narradora e Artista Docente das áreas Teatro, Música e Dança, é Mestra em Ensino das Artes Cênicas pela UNIRIO. Professora da Rede Pública Municipal de Ensino do Rio de Janeiro há 19 anos, atualmente é professora de Teatro do Núcleo de Arte Avenida dos Desfiles.